quinta-feira, 24 de setembro de 2009

.the terrible hours.



(fotografia por V. Caldeira)

um dia, quando formos duas gotas muito vagas, sobre a cama, vou perguntar-te porque me amas. tu vais demorar num sorriso e responder-me que não fazes ideia mas eu vou saber porquê, porque nesse momento vais lançar-te sobre os meus lábios e gritar-me um poema tão mudo como a neblina da cidade onde te conheci. lá ao fundo, a rua dispersa-se, fora da janela do quarto, num crepúsculo esbatido nas luzes dos candeeiros. a tua resposta será clara. e eu, em ti, dentro de ti, vou poder dizer que quero viver eternamente.

sábado, 28 de março de 2009

.absorption revery.

(fotografia por V. Caldeira)
esta casa viu-nos acontecer. mediu-nos o olhar carnívoro da primeira vez que exaltamos o bafo; transpôs os limites temporais quando nos lançamos contra as portas, ruidosamente, e caímos no chão, entre as paredes que absorviam o teu cheiro. esta casa viu-nos incendiar, o suor recíproco a estender-se sobre a cama, o fogo nas minhas mãos a consumir as tuas ancas, os músculos de todos os sentidos – rendermo-nos, como animais aos restos de pulsação. é como alimentarmo-nos de algo que amamos sem que este se destrua no estômago; é uma corrosão sem deixar restos, só rastos de nós, espalhados no chão, rastos que respiram a escuridão delicada. esta casa viu-nos respirar a escuridão – olhares traçados, suspensos como reticências quase sorridentes, quase como feridas infligidas por amor. as mãos a dançarem, flutuantes, sobre as nossas bocas, uma nudez que dói e adormece os movimentos. e enquanto fiz dançar as minhas mãos quis dizer-te que nunca chegamos a ser duas pessoas – antes da casa nos ver acontecer fomos dois fragmentos rasgados, a caminharem desonestos pelos mesmos espaços, remotamente. [a minha alma é ténue. a minha alma é tua. a minha alma é tua e é quase minha de tão tua.] a minha alma saiu-me pelos olhos, abandonou-me para te encontrar e te arrastar para dentro de mim num suspiro virtuoso.

Dentro da casa olham-nos (penso eu, porque não sei pensar de outra maneira) – as mãos abraçadas com a força habitual. Sabem que sim. Mas esta casa viu-nos fazer poesia.
V. Caldeira (2008)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

.embrace of a silent death.

(fotografia por V. Caldeira)

quando te deitaste sobre o mundo eras só tu; com os olhos fechados, a respirar muitas vezes dentro dos contornos da noite. eu era quase nada enquanto te ouvia. e soube tão bem ser quase nada – as minhas mãos não eram mãos, eram coisas; eram mãos quando te tocavam mas depois desapareciam dentro de ti. dentro do teu peito ouvia-se o mar feito de ondas apressadas, marés que subiam e voltavam envoltas em espuma. por vezes confundia-se com o quarto e os espelhos que oscilavam mas naquele momento eu tive a certeza de muitas coisas porque te embalei. [amor, a noite acena-me e eu não adormeço.] – tu não adormecias. a noite acenava-te. até eu decidir ser mais do que quase nada, a noite foi imensa. depois acolhi-te dentro da minha pele, a cidade e as ruas, as luzes esbatidas, os arcos de todos os edifícios, o vento nas cortinas que não eram minhas, linhas opacas. os teus olhos eram contornos a arrecadarem a claridade. contive a fome durante muito tempo; queria estar ali, a sorrir porque a tua sombra me apaziguava e porque o teu cabelo tinha o cheiro da terra molhada. tinha o cheiro da chuva entre as chuvas. foi como uma canção que eu ouvi há muito tempo – quando ainda não te conhecia e tinha os olhos virados para o mar. os meus olhos eram varandas pequenas, saturadas pelo sal, o som dos búzios, as areias poluídas pelo odor das aves mortas. antes de ti existia o areal atravessado de negro; mas hoje eu adormeço-te. as aves mortas apodreceram – o mar levou os restos, consumiu-lhes as asas e as covas cegas dos olhos. a paisagem ressurge e é hoje, apenas, quando te deitas sobre o mundo, de olhos fechados, a respirar muitas vezes dentro dos contornos da noite, dentro de mim, a anulares as minhas mãos. [e depois?]


depois morro profundamente até ser o dia em que voltas e destróis todos os relógios do mundo.

V. Caldeira (2008)

.soulsadness.

(fotografia por V. Caldeira)

(às 02:51 do dia 20 de agosto pensei para ti. perdoa-me a ausência; isto são apenas espelhos da extrema quietude nas minhas madrugadas.)

morrer-me contigo, assim, tão profundamente. tão sem querer. um luar quase crescente de todas as angustias que vais sentindo. todas as angustias que eu te vou roubando, aos pedacinhos, com os quais eu vou construindo o resto do que me tem magoado. não quero que penses que gosto, que é propositado o medo que surge enquanto me debato com questões temporais. não é nada disso. é só porque no medo a ternura parece quebrar-se numa ilusão assombrosa e eu debruço-me, vendada em laços, para a segurar, para ta oferecer, para a amarrar a ti para que não a percas, tudo muito veloz, demasiado veloz, grande, imenso, branco dentro de mim – tão salgado como a tua pele. mas tu declaras-me um je ne sais quois de tristeza e tudo aquilo que são os meus olhos funde-se com o que resta das minhas artérias: o som da minha própria pulsação na garganta que seca com os pensamentos. [confias o suficiente em mim para me confessares os teus penhascos?] escuta e perdoa-me se alguma vez eu te fiz acreditar que nada seria suficiente – por vezes é apenas o tom magoado das coisas por si só. e mesmo que eu não tenha a culpa de nada, perdoa-me na mesma porque os dias são eremitas de pedra.

pouco a pouco temos uma casa construída de horas e cigarros.
é uma casa amaldiçoada que vamos acabar por destruir
com sorrisos demorados. Só temos de ter esperança, lembras-te?

V. Caldeira (2008)

.a song for bereavement.

(fotografia por V. Caldeira)

(às 02:00 do dia 18 de agosto de 2008 eu escrevi)

a ti, meu amor, que me afastaste da morte à qual eu chamava casa e me mostraste uma outra morte que não uma inteiramente lastimável.

todos os espectros são nossos, quando estendemos as mãos antecedentes a um beijo angustiado. é ter a exactidão das horas ainda por passar – os dias longos a morrerem doentios, a palidez das noites desabitadas. nada é relevante. a fome é muito vaga dentro de mim. a sede é fútil. respirar é inevitável – são coisas que faço sem querer, porque preferia que estagnasse tudo até voltar a ver-te chegar; esperar; o que quer que seja que fazes quando te vejo. entretanto sou eu a existir repetidamente de silêncio em meu redor – convenço-me de que aquele silêncio é o teu, só para não chorar outra vez. é só para não ter de chorar outra vez, como ontem – como antes de ontem; como em todos os dias em que a minha vida se torna num reflexo de ti. um reflexo da suma de todas as despedidas em que os meus olhos querem gritar muito alto mas que, em vez disso, abraçam-te e segredam-te – até breve, meu amor. Mas nada é breve. Tudo é uma distância incalculável e odiosa porque de um momento para o outro somos feitos de nada. e se num momento tenho os teus lábios perto dos meus dedos, no outro tenho-te num beijo ao longe que vai ser o último durante tanto tempo. dizem que nunca ninguém morreu verdadeiramente de saudade, mas alguém se esqueceu de que a saudade é uma morte constante. é morrer tão constantemente que os olhos passam a ser poços da alma, – quem os designou janelas deveria morrer de saudade – a transportarem as angústias, suspensas pelos nervos das órbitas, equilibradas, perplexas até se esvaziarem rosto abaixo, que é quando o coração sofre a desmedida metamorfose que dói até ser o dia em que me lanço sobre a tua boca e não penso na dor que vou sentir quando for o momento de mais um – até breve, meu amor. até breve. – e os teus olhos num fitar tão magoado. e a minha expressão tão descontrolada, a obrigar o sorriso, a fingir que vai ser breve, que vai ser já amanhã, que vai ser já mais logo, daqui a um bocadinho. só um bocadinho. até breve. até breve. até amanhã. meu amor, até já.
V. Caldeira (2008)

.tear of misanthropy.

(fotografia por V.Caldeira)

quando o quarto se encerra, antes da noite, abro a minha janela para me lembrar de como a luz bate nos prédios e de como espelham o teu rosto em toda a parte. gosto de apagar a luz; ver as cortinas paradas, o azul nocturno, quieto, um vazio muito doce que se esbate nos contornos. lembro-me de ti. são dias magoados, os que se seguem às partidas. antes da noite, quando o quarto se encerra, as luzes da tarde são traços vagos nos vidros. são pombos que se escondem nas arcadas. segundas-Feiras passadas em redor de utopias, mas de repente

o som fendido, rasgado como um sorriso teu, quase tão grande como o azul nocturno. [mais sossegado. abafado pelo calor prisioneiro do início do verão.] gostava que viesses sempre antes da noite, para que abrisses a janela comigo – veres a luz a bater nos prédios, o teu rosto espelhado no meu. a vida feita de espelhos. não seria maravilhoso? as estradas a reflectirem os destinos. as sombras a serem mais do que imagens maiores do que nós.

hoje encerro o quarto quase sozinha.
apago a luz para ver a rua e as luzes dos outros. as vidas feitas de espelhos e pianos que nunca chegam a ser realmente nossos. mas, sabes que mais?
gosto das tuas mãos a serem apressadas.
V. Caldeira (2008)

.solitaire.

(fotografia por V. Caldeira)